segunda-feira, 12 de julho de 2010

Este artigo é extraído do trabalho de conclusão de curso, resultante dos três anos de iniciação científica,no qual fui bolsista (PIBIC/CNPQ). Seu objetivo é levantar, através da questão sobre a História, umapossibilidade de diálogo entre o pensamento de Max Weber e o de Michel Foucault. Tentou-seestabelecer uma mediação de cunho teórico que visasse aproximar as reflexões destes autores, semcom isso, estabelecer uma certa ”continuidade” do pensamento de um, em relação ao outro. Por meio dealgumas passagens de obras dos respectivos autores, estabelecemos uma certa afinidade temáticaentre ambos, isto é, como a questão da história iluminou os diferentes pensamentos de Weber eFoucault. Neste sentido o artigo tem um caráter, eminentemente, exploratório e especulativo. Apreocupação na feitura do artigo é mostrar uma possibilidade de trabalhar em pesquisa de iniciaçãocientífica em ciências sociais com um diálogo entre referencial teórico e pesquisa empírica, buscandouma ampla compreensão tanto de um, como de outro.ABSTRACTThis article is extracted of the work of course conclusion (TCC), resultant of the three years of scientificinitiation (IC), in which I was scholarship holder (PIBIC/CNPQ). Its objective is to raise, through thequestion on History, a dialogue possibility between the thought of Max Weber and of Michel Foucault. Itwas tried to establish a mediation of theoretical matrix that aimed at to approach the reflections of theseauthors, without with this, to establish a certain ”continuity” of the one thought, in relation to the other. Bymeans of some passages of the works of the respective authors, we establish a certain thematic affinitybetween both, that is, as the question of history illuminated the different thoughts of Weber and Foucault.In this sense, the article has a character, eminently, speculative and exploratory. The concern in theelaboration of the article is to show a possibility to work in research of scientific initiation in social scienceswith a dialogue between theoretical referential and empirical research, searching an ample understandingin such a way of one, as of another one.2Temos como objetivo neste breve artigo tecermos algumas considerações deordem teórica1 que foram de máxima importância para os três anos de iniciação científica,experiência que culminou na feitura do trabalho de conclusão de curso com o título:Teologia ecumênica uma teologia política? Um estudo sobre as práticas sociais do saberteológico do ecumenismo em Belém do Pará. Neste sentido, este artigo é um fragmentodo citado trabalho que foi adequado para a forma de artigo com o interesse de exporcomo o referencial teórico escolhido podia ser articulado ao trabalho de coleta de dadosrealizado.Pretende-se desta feita estabelecer uma breve discussão sobre uma questão quesegundo pensamos perpassa o pensamento de Max Weber e Michel Foucault, isto é, aquestão da história, ou melhor, como estes pensadores, com diferentes modos de pensar asociedade, parecem ter uma possível convergência temática no que concerne àproblematização sobre a História. Partir-se-á, primeiramente, da tríade conceitualweberiana acerca das relações de poder e, em seguida, se passará a um texto de Foucaultno qual ele trata, especificamente, da questão acerca do sentido da História.Posteriormente, faremos uso de algumas passagens nas quais Max Weber realiza suaproblematização sobre as relações entre História e sociologia, chegando ao seudiagnóstico do “desencantamento do mundo”(die Entazauberung der Welt),profundamente marcado por sua concepção de História do ocidente.O fio condutor quesitua a reflexão dentro destes diferentes elementos do pensamento weberiano é estarciente que existe uma questão maior que dá unidade à sua obra. Esta questão de cunhoteórico-metodológico é o significado do processo de racionalização no ocidente. Oprocesso de racionalização em Weber é muito mais amplo que a noção de1 No trabalho de conclusão de curso buscamos através do método compreensivo, ampliar nosso entendimentoacerca do mesmo e, com isso, nos utilizarmos mais adequadamente deste para futuras pesquisas.3desencantamento do mundo, contudo, estes conceitos não podem ser desvinculados noque tange ao conjunto da obra de Weber, pois, às vezes surgem como correlatos emdiferentes passagens de algumas obras de Weber como, por exemplo, na Ética protestantee na Ciência como Vocação.Neste percurso sobre as respectivas considerações sobre a História tiveramdiferentes implicações no modo como, por exemplo, irão compreender as relações depoder2 na sociedade moderna. Na sociologia política de Weber, resumidamente, o poder éde consistência aquosa, de difícil especificação sociológica. É bom lembrar que fazemparte do aparato conceitual weberiano no que tange a sua sociologia política a tríadeconceitual de poder, dominação e disciplina. Esta tríade de conceitos lança luzes sobre oque para Weber estaria fundamentando as ações sociais; sendo a dominação aquela demaior precisão quando se trata de estudos de ordem empírica, é possível identificar, emmaior ou em menor grau, sua presença na ação de relações de dominação.“A dominação, como conceito mais geral e sem referência a algum conteúdo concreto, é um dos maisimportantes elementos da ação social. Sem dúvida nem toda ação social apresenta uma estrutura queimplica a dominação. Mas, na maioria de suas formas, a dominação desempenha um papel considerável,mesmo naquelas em que não se supõe isto à primeira vista”.(WEBER: 2000, p.187)Como dito acima, fica evidente que o conceito de dominação é sociologicamentemais viável, pois, apresenta uma gama de exemplos do ponto de vista empírico, já oconceito de poder, é, na maioria das vezes, utilizado por Weber como complementaràquele. Isto quer dizer, que, em Weber, o poder não é propriedade, pois não tem umaforma que emane de uma certa concepção de “contrato social”; isso nos remete a outro2 No que diz respeito à sociologia política de Max Weber as relações sociais só podem ser entendidas nocontexto de uma relação social com sentido, evidentemente que o conceito de poder em Weber como ele mesmo dizé “amorfo”, isto quer dizer que ele não circunscreve o poder a um local, como se ele emanasse de algum lugar ou dealguém, neste sentido, o poder como Weber conceitua pode se dar nas mais variadas relações, mesmo naquelas quefogem à circunscrição do Estado. Vemos, desta forma, que poder para Weber não emana de um contrato. “Podersignifica toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qualfor o fundamento dessa probabilidade”.(WEBER: 2000 p.33).4conceito referente à sociologia política, isto é, à disciplina. Ela tem como uma de suasmais importantes características (...) o adestramento mecanizado e o encaixamento doindivíduo em um mecanismo inescapável, que exige seu ‘acompanhamento’ e que oincorpora à formação global, por assim dizer, ‘automaticamente’...”(WEBER: 2000p187.). Como observado, as técnicas de disciplina podem se desenvolver nas diversasrelações sociais, inclusive aquelas de conteúdo expressamente religioso; um exemplodado por Weber se refere aos exercícios espirituais da Ordem de Santo Inácio de Loyola.Passamos agora a expor como Weber e Foucault podem ser aproximados. Estaaproximação não tem como objetivo fazer um estudo que busque mostrar como Foucaultfaz utilização de Weber, se é que faz em sua obra. Esse empreendimento é por demaishercúleo para um pequeno artigo. Muito louvável seria um estudo de tal magnitude, pois,ajudaria na compreensão, tanto de um autor, como de outro, mas, devemos ressaltar quenão ambicionamos de forma alguma que nesta breve discussão se sinalize em tal direçãovisto que nos faltam o rigor e a habilidade para um empreendimento tão gigantesco.O primeiro texto de que lançamos mão é “Nietzsche, a genealogia e a história”;nele, Foucault evidencia o fio condutor de sua perspectiva sobre a História e, de certaforma, o modo de sua utilização à prática do historiador. Devemos ressaltar que Foucaultirá discutir alguns termos que Nietzsche utiliza, propositalmente, para se distinguir daforma metafísica que pode dominar o conhecimento histórico, impedindo que se faça umainterrogação crítica a respeito do que acontece no presente.Entre os termos que definem a empreitada da genealogia, como forma de fazer virà tona a história efetiva, que difere daquela dos historiadores, encontra-se o termoemergência (Entstehung) que, de acordo com Foucault, é um dos termos usados, deforma estratégica, por Nietzsche para não fazer uso do termo origem (Ursprung). ParaFoucault, Nietzsche usa às vezes este termo de forma arbitrária, mas, na maioria dasvezes seu uso é estratégico e visa denunciar a história dos historiadores que possui o víciode se apoiar em fundamentos metafísicos para sustentar seu trabalho histórico. EmFoucault, a pesquisa da emergência permite à genealogia dissociar as unidades que a5história tradicional unificou deixando-as intocáveis como verdadeiras pedras angulares doconhecimento histórico. Assim que Nietzsche, para Foucault, em vez de usar o termoorigem em suas análises, o substitui ou por emergência (Entstehung) ou proveniência(Hercunft).O emprego destes dois termos em Nietzsche é tão acentuado que eles seencontram em uma perspectiva completamente oposta ao “sentido histórico”, na históriados historiadores, e que adquire outro contorno na história efetiva. Naquela, o sentidohistórico era algo solene, como se a história fosse provida de um sentido, quepaulatinamente se desvelaria ante o olhar imparcial do historiador, já a história efetiva,como visto acima, põe em circulação tudo aquilo que se julgava sem História, ou comobase, para se conhecer a História, indicando que nem a História escapa da máquinagenealógica construída por Nietzsche. Resumidamente, pode ser dito que não há nenhumsentido histórico que seja um fim último e imutável, muito pelo contrário, falar emsentido histórico, de acordo com a genealogia, como modo crítico de feitura da história, émostrar como se dá o aparecimento da descontinuidade: “... o sentido histórico escaparáda metafísica para tornar-se instrumento privilegiado da genealogia se ele não se apóiasobre nenhum absoluto”.(FOUCAULT: 1997, p27)É bom que seja mencionado outro texto de Foucault, cuja argumentação é umaexplanação sobre o que caracteriza a perspectiva nietzscheana sobre a história,o texto aque nos referimos é intitulado “A verdade e as formas jurídicas”. Nele, especificamente,em sua primeira conferência, Foucault faz menção a uma história política doconhecimento. E, mais uma vez, ele se ancorará em Nietzsche como modelo de análisehistórica e, novamente, se contraporá às infiltrações metafísicas que poluem a história,não permitindo que o historiador realize uma interrogação sobre a história do presente.Em sua apreciação acerca da emergência do conhecimento, como resultado de lutaspolíticas, Foucault dá uma boa demonstração da genealogia em ação e que, de algumaforma, ajuda a que se compreenda o que significa fazer uma pesquisa cujo alvo é sergenealógica. “O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito6com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história”.(FOUCAULT:1999 p.11).Citamos estes dois textos, porque consideramos que neles se encontram bonsmotivos para que acentuemos, que tanto Foucault como Max Weber mantêm relaçõescom Nietzsche no que se refere à sua concepção sobre a história. Já mencionamos queFoucault faz um extenso estudo sobre os termos que Nietzsche opõe explicitamente àorigem, talvez aí resida uma convergência temática no que concerne às respectivasconcepções de história, tanto de Foucault como de Weber, que, como se evidencia, sãotributárias do pensamento nietzscheano. Mas elas não devem ser vistas como simétricas,no sentido de serem complementares. Muito curiosamente o termo emergência aparece naobra mais conhecida de Max Weber, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”como uma forma de Weber buscar uma resposta sobre a especificidade do processo deracionalização ocorrido no ocidente, este termo permite ainda entendermos que paraWeber a racionalização não é um sentido inerente ao ocidente no que diz respeito àorigem de nossa civilização.Há também por parte de Weber uma certa preocupação emfazer uma problematização sobre a história do presente.“Assim, numa história universal da cultura, mesmo de um ponto de vista aparentemente econômico, não é,em última análise, o desenvolvimento da atividade capitalística como tal, diferindo nas diversas culturasapenas quanto à forma... É antes a origem (entstehung) desse sóbrio capitalismo burguês com suaorganização racional do trabalho. Ou em termos de história da cultura, é o da origem (entstehung) daclasse burguesa ocidental e suas peculiaridades, um problema que está com certeza estritamente ligado aoda origem (entstehung) da organização capitalista do trabalho, embora não se trate da mesma coisa. Poisos burgueses como classe existiam antes do desenvolvimento das formas peculiares de capitalismo,embora, de fato, apenas no hemisfério ocidental” (WEBER: 2001 p.30).Nesse curto fragmento do texto de Weber, citado sem nenhuma arbitrariedade, seevidencia sua recusa a uma História Universal, ela é insuficiente para dar conta dasespecificidades, ou multiplicidades de forças que foram responsáveis pela emergência docapitalismo, ou melhor, do ethos capitalista. Em outra parte do mesmo texto, Weber sepreocupa em demonstrar como não havia nenhum tipo de fim pré-determinado para que ocapitalismo se consolidasse, antes, uma multiplicidade de forças que se chocaram é que oengendraram e são algumas destas forças que Weber quer marcar (deixar que emerjam)7em sua obra. Esse tipo de posicionamento concernente à história, de acordo com algunscomentadores da obra de Weber, é fruto de uma apropriação, feita por ele, de Nietzsche3.“Weber repudiou claramente a noção de evolução, qualificando-a de ‘escroqueria romântica’. Não queriaouvir falar dessa noção, nem sob sua forma dialética, nem sob sua forma organológica. Essa atitudenegativa traduz sua renúncia a toda e qualquer história universal, história que ele pretendia substituir poruma sociologia comparativa onde apenas os fenômenos paralelos desempenhariam algum papel e nãolinhas laterais de evolução”.(FLEISCHMANN: 1977, p.149)A noção de história em Weber está articulada com sua compreensão a respeito doprocesso de racionalização ocidental, que é um dos elementos que ele procurou demarcarem todas as suas pesquisas, principalmente, seus estudos sobre as religiões mundiais. Oque de mais característico se apresenta em sua concepção de racionalização é que paraWeber nem mesmo este processo pode ser visto como um sentido último que significariaa história ocidental, muito pelo contrário a racionalização tem uma história, ou ainda,historias.Assim, com a utilização de Nietzsche em sua obra, Weber se desvincula de umapesquisa histórica da origem, para se filiar a uma pesquisa ancorada na concepçãonietzscheana de emergência que também cintila na obra de Foucault como já foimencionado acima. Weber está preocupado em mostrar como se deu a formação doocidente moderno, que se pretende universal, mas, que tem um momento de emergênciasaturado de História.“Entendemos bem a questão, distinta daquela do determinismo histórico. Não se trata de saber se, naopinião de Weber, a emergência (grifo nosso) de certa forma particular de civilização que realiza oocidente moderno era historicamente inelutável. Certamente, o conceito weberiano de história, construídosobre as ruínas de toda a escatologia religiosa, assim como dos seus diversos avatares metafísicos, excluitoda idéia de um desenvolvimento necessário cujo fim prescrito desde sempre fosse esta civilização”.(COLLIOT-THELENE: 1995, p.75)Considerando esta citação, fica evidente que, no pensamento weberiano acerca dahistória estão inscritas as marcas do pensamento de Nietzsche. Até no comentário feito3 Uma das comentadoras da obra de Weber Catherinne Colliot-Théléne, fazendo uso de estudos já realizados acercada influência de Nietzsche sobre o pensamento de Weber, diz que por volta de 18995-96 é perceptível uma certamudança de linguagem na obra de Weber que de acordo com uma carta dele à sua mulher de 26 de julho de 1894situa a primeira leitura sistemática que ele fez de Nietzsche entre 1893 e 1894. (COLLIOT-THELENE: 1995, p.46)8pela comentadora da obra de Weber se faz uso do termo emergência, destacando, destaforma, que ele faz uso do termo à moda nietzschiana, sendo este mais ajustado à suaconcepção de história, dando a entender que o termo origem não só não consta, como,também, se opõe à empreitada weberiana de história do ocidente, sendo até repudiadocomo forma de fazer a história.Em se tratando do uso da História em Weber que se dá através de seus conceitos,os tipos ideais ele, mostra como se dá a gênese destes conceitos que, como se podeperceber, não têm afinidade com o mundo a conhecer. O que implica em dizer que eles seconfiguram como um esforço para organizar o “caos” que é o mundo empírico; o real écarente de uma ordem que se compatibilize com qualquer que seja o arranjo de conceitosque lhe sejam atribuídos. Esse é para Weber um pressuposto que o acompanhará atéculminar nos estudos que se referem à teoria da ciência. Tal precaução, também, é muitousada por estudiosos que procuram vincular o método compreensivo weberiano àscriticas de Nietsche ao conhecimento.Após apresentarmos alguns poucos aspectos do pensamento de Weber, queencontram apoio no seio do pensamento de Nietzsche, aspectos que já foram alvo deestudos de pesquisadores que procuraram perceber as conexões existentes entre estesautores, posteriormente voltaremos a outras ressonâncias que ainda precisam serressaltadas. Mas, não podemos nos desgarrar de nosso interesse de pesquisa que éjustamente a utilização de Weber articulada com Foucault, para isso julgamos que jáexistem elementos substanciais para que avancemos um pouco mais na justificativa deaproximar os dois autores. Devemos fazer então menção ao estudo da autora SandraCoelho de Souza, que em seu trabalho sobre a obra de Foucault faz referência em relaçãoa algumas citações feitas por ele sobre Weber: “que se pense em Hegel, em Nietzsche.“Que se pense nos ‘pós-hegelianos, na escola de Frankfurt e em Lukacs, passandotambém por Feuerbach, Marx, Nietzsche e Weber’. Foucault lembra as múltiplasanálises que serviram de apoio à questão filosófica do que foi o Aufklärung...” (SOUZA:2000 p.71-72).9É bom que se diga que nesta passagem do texto de Sandra Souza ela fazreferência à utilização do texto de Kant “O que é o esclarecimento?”, por parte deFoucault, nele é possível identificar a preocupação de Kant que diz respeito a umainterrogação sobre o presente. É incômodo com o presente que é registrado por Kant e éessa uma das ferramentas críticas da qual Foucault tira proveito para demonstrar que aí seencontra a tarefa filosófica dos nossos dias. Entre os autores listados por Foucault, que sefiliam a esta tradição, se encontra Max Weber, que para a autora significou uma dasmúltiplas abordagens sobre o presente encontradas em Foucault. Na esteira dainterrogação kantiana, Foucault deixa muito evidente que ele não é o primeiro a fazer estainterrogação em articulação com o texto de Kant, pois há toda uma tradição depensamento que se filia a esta forma de interrogação sobre o presente. Neste sentido,pode ser dito a abordagem weberiana é uma das interrogações críticas acerca do presente,sendo um dos desdobramentos da questão kantiana a respeito do esclarecimento noocidenteSemelhante preocupação perpassa o pensamento weberiano, só que evidentemente nãopor meio do mesmo enfoque, mas uma coincidência é que mesmo percebendo que aracionalização ocorrida no ocidente tem pretensões universais, como um destinoinevitável do ocidente, mesmo assim é possível identificar que em Weber, “esse destinoinevitável”, é uma forma de mascarar que a racionalização não é um processohomogêneo, e muito menos contínuo.“Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da moderna civilização européiaestará sujeito á indagação de quais combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilizaçãoocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos crer, apresentam uma linhade desenvolvimento de significado e valor universais”.(WEBER: 2001 p.21).Podemos então dizer que, em Weber, a razão ocidental teve seu nascimento apartir do desrazoável, para isso ele se deterá em compreender como se deu aracionalização das condutas a partir de elementos não racionais como por exemplo oascetismo intramundano calvinista.10Em se tratando da questão de interrogação do presente, evocada por Foucault emum de seus textos mais conhecidos, ele textualmente expõe sua utilização da genealogianietzscheana, para fazer: “A história dessa microfísica do poder punitivo seria então umagenealogia da ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna. A ver nessa almaos restos de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certatecnologia do poder sobre o corpo”.(FOUCAULT: 2004, p28).“Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto,partir de sua ‘origem’, negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, aocontrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atençãoescrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rostodo outro; não ter pudor de ir procurá-las lá onde elas estão, escavando os basfond; deixar-lhes otempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob suaguarda”.(FOUCAULT: 1997, p.19).O movimento da genealogia é o da espiral, isto significa dizer que ele parte não de umcomeço fixado em uma certa “continuidade” histórica, ou de um fluxo dialético no qualcada momento procedente representa a superação daquele que o antecedeu. ComoFoucault nos mostra é preciso fazer a história dos elementos que estão na base dasubjetividade ocidental e não se deixar seduzir por esta subjetividade; a genealogiafoucaultina exorciza a origem da história, ou seja, a história não tem nenhuma verdadeaprisionada.Passamos agora a desenvolver, a partir de algumas citações que fazem referênciaàs ressonâncias do pensamento de Nietzsche sobre a teoria dos tipos ideais de Weber. E,através destas ressonâncias, encontrar uma aproximação de Foucault que esteja tambémancorada na utilização que ele faz de Nietzsche.Existem estudos que procuram fundamentar as contribuições de Weber paraquestões de ordem teórica que se referem à construção de conceitos que sejam aptos paraconhecer o real empírico. A contribuição weberiana se dá em mostrar, fundamentalmente,11como se dá a gênese dos conceitos por ele usados em seus trabalhos. Os tipos ideais comoWeber os explicita em sua obra, são uma forma de ordenamento do caos empírico, pois, arealidade que compõe este caos é muito mais rica que esses conceitos, que terminam porencapsulá-la, mas mesmo esse paradoxo insuperável requer que se compreenda como osconceitos são inventados pelo pesquisador.“Weber, a construção da noção de tipo-ideal articula-se diretamente com a crítica da noção de lei - o que,aliás, neste diálogo, poderia ajudar-nos a aprofundar a relação, não tão óbvia, em Nietzsche, entre acrítica da linguagem e a da lei. O tipo ideal parece enquadrar-sena discussão de Nietzsche sobre alinguagem, antes de mais nada porque é: A)uma utopia;B) inevitável;C) extremado.(VELHO: 1995, p.82)Como já foi anteriormente mencionado a noção de tipo ideal em Weber nãoresulta de um conhecimento científico necessário, que justificaria conhecer o mundo.Antes, porém, o tipo é o resultado de uma incompatibilidade entre o conceito e o mundo,daí ser possível verificar a necessidade que o tipo apresenta de estar a todo o momentosendo inquirido sobre sua validade.Há uma passagem de um texto de Nietzsche em que Otávio Velho acima citadofaz uma afirmação que consistiria em dizer que Weber seria devedor da contribuição queNietzsche legara acerca da compreensão dos conceitos, que são muito mais um meio doque um fim.“Pensemos ainda na formação dos conceitos. Toda a palavra torna-se logo conceito quando nãodeve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qualdeve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menossemelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todoconceito nasce por igualação do não-igual”.(NIETZSCHE: 2000 p.56).Para Otávio Velho, há nesta passagem uma espécie de constatação que desnudatoda e qualquer tentativa de fazer dos conceitos algo que eles não são. Assim, por essalição nietzscheana sobre a formação de um conceito busca-se registrar o caráter deutilidade que se fixa à prática da conceituação, não há aí nenhuma indicação que se refiraà verdade ou não do conceito. Nesta constatação de Nietzsche estaria a ponte para filiar aconcepção weberiana de tipo-ideal ao pensamento nietzscheano.12O pesquisador tem que estar apercebido de que os conceitos por ele elaboradosexaurem, por um lado, as diferenças que são específicas aos fenômenos e, por outro, sãode extrema utilidade para o pensamento. A única ressalva que VELHO faz, com relação àdiferença na utilização desta constatação, é que aquilo que em Weber se encontraseparado, como questões relativas ao método e em relação ao poder, em Nietzsche essasquestões aparecem juntas.“Portanto a construção de tipos-ideais abstratos não interessa como fim, mas única eexclusivamente como meio de conhecimento. Qualquer exame atento dos elementos conceituais daexposição histórica demonstra, no entanto, que o historiador – logo tenta ir além da mera comprovação derelações concretas, para determinar a significação cultural de um evento individual, por mais simples queseja... construções conceituais deste tipo, mediante as quais procuramos dominar a realidade por meio dareflexão e da compreensão, deverá ser determinado mediante a descrição...” (WEBER: 2001 p.144).Toda tentativa do historiador de ir além dos limites que seu saber conceitual quelhe permite se configura, de acordo com Weber, em um esforço inútil. Outro elementorevelador contido nesta passagem é justamente a incompatibilidade entre os conceitostipos-ideais e a realidade, incompatibilidade no que se refere a uma relação de dominaçãoque perpassa o conhecimento da realidade. Assim, vemos que enraizado nessa afirmaçãodo próprio Weber fica patente sua noção de perspectivismo relativo ao conhecimentoproduzido pela sociologia compreensiva, que é um desdobramento do que ele chama de“politeísmo de valores” justifica a escolha do objeto de análise. Estes valores sedigladiam uns aos outros, para que deles venha a emergir o vencedor, que nem sempre é omais forte.Esse politeísmo é ponto de partida para dominar a realidade por meio dos tiposideais,vemos que esta noção weberiana é fruto de um afrontamento entre valoresirreconciliáveis e, indefinidamente, belicosos. Percebemos então dois mundos que cercamo conhecimento empírico da realidade pretendido por Weber, um é o mundo objetivo daciência causal e o outro é o mundo subjetivo dos valores extracientíficos. Parece queambos os mundos se opõem, mas, também parecem estar irrevogavelmente unidos oumesclados, como se aí se encontrasse também a condição do homem moderno, com suaconduta de vida racionalizada e, que, entretanto, não encontra justificativa última para13suas ações a não ser arriscar-se no caótico mundo dos valores antagônicos4. Será que estaoposição entre estes dois mundos encontraria um correlato no próprio Nietzsche, que emum de seus textos se refere à relação entre o mundo dos fins e da vontade em oposição aomundo dos acasos, mas é melhor que nos remetamos ao próprio texto de Nietzsche.“Habituamo-nos a acreditar em dois reinos, o reino dos fins e da vontade e o reino dos acasos; nesteúltimo tudo se passa sem sentido, nele tudo vai, fica, e cai sem que ninguém pudesse dizer, por quê? Paraquê? – Temos medo desse poderoso reino da grande estupidez cósmica, pois aprendemos a conhecê-lo, omais das vezes, quando ele cai sobre o outro mundo, o dos fins e propósitos, como um tijolo do telhado enos atinge mortalmente algum belo fim: Essa crença nos dois reinos é um antiqüíssimo romantismo efábula: nós, anões espertos, com nossa vontade e nossos fins, somos molestados pelos estúpidos,arquiestúpidos gigantes, os acasos, atropelados por eles, muitas vezes esmagados sob seus pés – masapesar de tudo isso não gostaria de ficar sem a horripilante poesia dessa vizinhança, pois muitas vezesesses monstros vêm quando a teia de aranha dos fins tornou-se para nós demasiado enfadonha ouangustiante e proporcionam uma sublime diversão, se alguma vez sua mão dilacera a teia inteira - não queo tivessem querido esses irracionais! Mas estendem suas grosseiras mãos ossudas através de nossa teia,como se fosse ar”. (NIETZSCHE: 2000, p.153).Há nesta passagem do texto de Nietzsche suficientes motivos para acreditarmosque a noção de politeísmo de valores que Weber apresenta como ponto de partida para apesquisa científica, bem como em relação aos posicionamentos políticos que o agentepode ter, ficam bem ilustradas como tributárias do pensamento nietzsheano. Assim, comoele nos demonstra a proximidade entre os fins e acasos, sendo talvez muito mais claro quea forma como Weber se apropria desta contribuição que Nietzsche legou tanto aosaspectos que se referem à epistemologia, como à ação política. Vemos, desta forma, quepor mais que se queira fundamentar de forma segura a ciência sobre postulados quelegitimem, tais fins de conhecimento demonstram-se como frágeis ante “o mundo do semsentido”. Mundo, que tão de perto foi espreitado por Weber quando se dedicou àcompreensão da sociedade moderna, interrogando, como essa sociedade chegou a ser oque é, querendo com isso mostrar a falta de necessidade que é peculiar à nossa história.“Aprendamos, portanto, porque está mais que no tempo para isso: em nosso pretenso reinoparticular dos fins e da razão reinam igualmente os gigantes! E nossos fins e nossa razão não são anões,mas gigantes! E nossas próprias teias são dilaceradas por nós mesmos com tanta freqüência e tãoestabanadamente quanto pelos tijolos!... -deve-se acrescentar: sim, talvez haja somente um reino, talvez não4 Para Fleischmann é um traço distintivo da personalidade intelectual de Weber, o fato de ele ter optado pelaconvicção nietzscheana de que é à vontade de poder que dá condições para que se possa conhecer a realidade social(FLEISCHMANN: 1974).14haja nem vontade nem fins, e fomos nós que os imaginamos. Aquelas mãos de ferro da necessidade, quesacodem o tabuleiro de dados do acaso, jogam seu jogo por um tempo infinito: têm de aparecer nele dadosque parecem perfeitamente semelhantes à finalidade e racionalidade de todo grau”.(NIETZSCHE: 2000p.154).A oposição entre estes mundos, de acordo com Nietzsche, era um artifício dospovos antigos, para disporem de uma proteção contra as travessuras divinas, sendo umaforma de conjuração dos poderes divinos, tornando-os submissos. Já o cristianismoinverte essa relação colocando no seio deste mundo do acaso a sabedoria do deus eterno eabsconditus. No entanto, o diagnóstico nietzscheano sobre a modernidade é muito maissurpreendente quanto o paradoxo cristão, pois é muito provável que exista somente umúnico reino. E, o outro reino tenha sido somente fruto de nossa imaginação , que precisa atodo o momento se desfazer com a mesma facilidade com que foi feito, visto que mesmoaquilo que consideramos como proposital é na verdade fruto do afrontamento de forçascegas que se dão no acaso.É mais que oportuno dizermos, que esse texto de Nietzsche, cuja, referênciajulgamos adequada para ilustrar a concepção de politeísmo de valores, que perpassa ateoria do tipo-ideal em Weber, também é citado por Foucault, quando ele descreve asforças que se arriscam na história, ou a que põe em jogo. Nesta passagem ele busca banirqualquer vestígio de uma espécie de noção cristã de intenção primordial, que se atrele àhistória5. A história efetiva provocada pela genealogia só conhece um único reino “... omundo da história ‘efetiva’ conhece apenas um único reino, onde não há nemprovidência divina, nem causa final, mas somente ‘as mãos de ferro da necessidade quesacode o copo de dados do acaso’” (FOUCAULT: 199, p. 28).Como podemos ver, Foucault segue em sua genealogia as pegadas de Nietzschede uma forma muito mais clara do que a evocada por Weber. A passagem de Nietzsche épropositalmente utilizada para que sejamos capazes de perceber como a concepção detipo-ideal se comportaria diante da referência nietzscheana que, como já ressaltamos, é5 Os historiadores deveriam aprender com os cabalistas que, por meio de combinações das letras do nome sagrado,conjuram a tradição a expelir o novo. Eles se valem dos mais diversos pontos de emergência da tradição talmúdica ea usaram contra ela mesma , mesmo assim, fazem da cabalá uma tecnologia que a tradição não pode negar.15textualmente citada por Foucault. Pretendemos fazer mais uma referência, que aindajulgamos útil para nosso estudo de utilização de Weber e Foucault na presente pesquisa,nos referimos a um texto de Francisco Ortega “Apêndice. Michel Foucault e Max Webersobre o governo e direção da vida”.Nesse estudo Ortega compreende que o tema da “direção da vida” é umaproblemática que pode muito bem aproximar ambos os autores, ainda que ele mesmoconfesse que tem consciência de que suas obras tenham sentidos diferentes, mas,considerando toda dificuldade inerente a esta tarefa, a relação entre estes autores épossível. “Meu intuito nestas páginas não consiste em apresentar todos os aspectos destarelação, mas mostrar como a concentração de Max Weber no problema da direção davida coloca-o na proximidade da concepção foucaultiana do poder comogoverno”.(ORTEGA: 1999, p45).Para Ortega, A ética protestante e o espírito do capitalismo é um bom exemplo decomo Weber pensava a elaboração da vida tipicamente racionalizada do homemmoderno. Ortega acredita que mesmo os estudos de doutrina da ciência que Weberdesenvolveu sofrem ressonâncias de sua concepção de direção da vida, isto se refere aoantagonismo de valores ao qual acima ressaltamos. Outra evidência da convergência entreambos é seu diagnóstico sobre a modernidade, que seria orientada pela perspectiva dadireção da vida. Weber veria na disciplina do homem moderno, engendrada pela ascesecristã, o modo de viver típico do ocidente, já para Foucault a sua descrição das disciplinasseria o correlato da concepção weberiana de modernidade. Bom, o esforço que aquiempreendemos, como dissemos no início, buscou somente aproximar os dois autores, natentativa de construirmos um nexo explicativo provisório no qual em suas respectivasperspectivas sobre a história.Palavras-chave: História, compreensão, desencantamento do mundo, genealogia.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.16COLLIOT-THÉLÉNE. Catherine. Max Weber e a história. São Paulo: Brasilense.1995.FLEISCHMANN. Eugenne. Weber e Nietzsche. Rio de Janeiro: Livros técnicos ecientíficos, 1977. p137-185.In. Sociologia para ler os clássicos.FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 7ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária,2004.___________________. A verdade e as formas jurídicas. 2ed. Rio de Janeiro: NAUEditora,1999.___________________ Vigiar e Punir. 28ed.Petrópolis: editora vozes, 2004.___________________. Microfísica do poder. ed.11. Rio de Janeiro:Edições Graal.1997.NIETZSCHE, Friedrich.“Aurora: pensamento sobre os preconceitos morais” In.NIETZSCHE.Coleção “Os pensadores”. São Paulo: abril cultural. 2000.Pg.153-155.WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. 3ed. São Paulo: Cortez, 2001.V.I._________, Max. Metodologia das ciências sociais.3ed. São Paulo: Cortez, 2001.V.II._________. A ética protestante e o espírito do capitalismo.ed 3.São Paulo:LivrariaPioneira editora.1983._________. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.ed 3.Brasília:editora Universidade de Brasília, 2000.V.I__________. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.ed 3.Brasília:editora Universidade de Brasília, 2000.V.II.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Marx, o marxismo e a história(notas de leitura) *
Armando Boito Jr.§
A problemática hegelianado Prefácio de 1859
As hipóteses para uma teoria da história apresentadas por Marx no famoso Prefácio de 1859 ao seu livro Contribuição à crítica da economia política assentam-se sobre uma problemática muito próxima da problemática da filosofia da história desenvolvida por Hegel nas suas obras Lições sobre a filosofia da história e Princípios de filosofia do direito ([1]).
Hegel, tanto no Princípios, que foi publicado em 1821, quanto no curso que ministrou em 1831 e que deu origem ao Lições, apresentara a história como o processo contraditório de autodesenvolvimento do Espírito do mundo, enquanto Marx, escrevendo cerca de vinte e cinco anos mais tarde, apresentou-a como o processo de autodesenvolvimento contraditório das forças produtivas. Trata-se de um autodesenvolvimento porque, tanto num autor quanto noutro, a força que move a história é autônoma e primeira ([2]); trata-se de um autodesenvolvimento contraditório porque ambas as forças, o Espírito do mundo e as forças produtivas, existem e se expandem no interior de uma forma que, num dado momento do processo, converte-se de estímulo em obstáculo ao desenvolvimento daquela força – em Hegel, a forma é o Espírito de um povo, aquele que pode desenvolver, até uma determinada etapa, as virtualidades do Espírito do mundo ([3]); enquanto em Marx, essa forma são as relações de produção, aquela que pode desenvolver, até uma determinada etapa, as forças produtivas. Do mesmo modo que o Espírito do povo grego, numa determinada etapa do desenvolvimento do Espírito do mundo, deixou de ser um estímulo para se converter em um obstáculo àquele desenvolvimento, deixando por isso de ser o “povo dominante na história do mundo”, assim também, o modo de produção escravista antigo, numa determinada etapa do desenvolvimento das forças produtivas, de estímulo converteu-se em obstáculo a esse desenvolvimento e, foi, por isso, substituído por um modo de produção superior. O Marx do Prefácio de 1859, literalmente inverteu Hegel, como ele próprio diria mais tarde no Prefácio à segunda edição alemã de O capital: colocou a economia (forças produtivas e relações de produção) no lugar do Espírito (Espírito univerval e Espírito de um povo), isto é, substituiu uma dialética idealista, que apresentava o mundo de cabeça para baixo, por outra materialista. Porém, acrescentaríamos nós, inverter não significa sair do lugar. O texto de 1859 permaneceu prisioneiro da mesma dialética segundo a qual “tudo é um”, isto é, que toda história nada mais é que o desenvolvimento do Espírito (Hegel) ou da economia (Prefácio de 1859) ([4]). Como mostrou Althusser, o economicismo é um hegelianismo invertido.
Ao par conceitual hegeliano corresponde o par conceitual do Prefácio de 1859 porque a contradição imanente a cada par e o processo também imanente que tal contradição produz são homólogos: o Espírito do mundo, que é o sujeito transcendental, e o Espírito de um povo, que é a sua realização histórica e efêmera daquele correspondem, respectivamente, às forças produtivas, que é o elemento dinâmico, e relações de produção, que é o elemento estático, porque ocupam os mesmos lugares no jogo de contradição que origina o processo histórico.
Acrescentemos de passagem que há duas outras semelhanças entre as problemáticas de Hegel e a do Prefácio de 1859 que são, essas, apenas formais. Em primeiro lugar, como o Marx de 1859 não se colocou a tarefa de explicar o porque do desenvolvimento das forças produtivas ao longo da história, a sua hipótese fundamental pode parecer, numa leitura menos atenta, um postulado metafísico, igualando-se, dessa maneira, ao postulado metafísico da existência do Espírito do mundo no sistema de Hegel. Mas a aproximação é apenas formal porque o limite ou ponto cego de uma teoria científica não é o mesmo que um postulado metafísico – o limite pede a sua remoção, enquanto que o postulado metafísico é “inamovível”. Ao final deste texto, voltaremos a esse ponto. Em segundo lugar, tanto em Hegel como no Marx de 1859, o processo histórico, refletindo, seja o desenvolvimento do Espírito do mundo, seja o desenvolvimento das forças produtivas, utiliza, no seu desenvolvimento imanente, a ação dos homens – para Hegel, a ação humana, imprescindível para a realização do Espírito do mundo, é apenas o braço inconsciente do Espírito, enquanto para o Marx do Prefácio de 1859, os homens vivem o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção no terreno da ideologia e agem, mesmo sem o saber, para resolvê-lo no terreno da ação política. Nos dois casos, são os homens que fazem a história, mas em nenhum deles o fazem como sujeitos da história – constatação que poderá parecer paradoxal às análises apressadas desse problema ([5]).
O quadro apresentado a seguir resume o que dissemos até aqui.
A IDÉIA DE PROCESSO HISTÓRICO:
HOMOLOGIA ENTRE MARX DE 1859 E HEGEL
HEGEL
(Introdução à Lições de filosofia da história e Princípios de filosofia do direito)
O que é o Espírito?
O Espírito é livre, ativo e transcen-dental. O processo de realização do Espírito é a história universal.

Povos (civiliza-
ções) sucessivos como etapas do desenvolvimento do Espírito.
Numa determina-da etapa do processo, o Espírito universal entra em contradição com o Espírito do povo no qual ele se realizava. Essa contradição produz a mudança histórica.
Os povos e os indivíduos agem perseguindo seus interesses particulares, mas, sem o saber, agem, ao mesmo tempo, como instrumentosdo universal (o Espírito).
MARX
(Prefácio à Introdução à crítica da economia política)
O que é a história?
A história é um processo determinado, em última instância, pelo desenvol-vimento das forças produtivas.

Modos de produção sucessivos como etapas do desenvolvi-mento das forças produtivas.
Numa determina-da etapa do processo, as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção nas quais elas se desenvol-viam. Essa contradição abre uma “época de revolução social”.
Os homens tomam consciência da contradição entre forças produtivas e relações de produção no terreno da ideologia e o resolvem através da luta de classes.
Uma nova problemática nostextos tardios de Marx?
Contudo, como diversos estudos já mostraram, Marx não permaneceu fiel a essa problemática ao longo de toda a sua obra. Na fase conhecida como “tardia” de sua produção, Marx afastou-se dessa visão hegeliana da história – uma evolução espontânea resultante da contradição interna da própria estrutura ([6]). Vale a pena citar uma reflexão do Marx na década de 1870, contida numa de suas cartas sobre a comuna agrária russa. Nessa carta, Marx, depois de afirmar que a sua análise da evolução do feudalismo ao capitalismo é apenas um “esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental” e não “uma teoria histórico-filosófica da marcha geral imposta a todos os povos”, tece as seguintes considerações.
“Em diferentes passagens de O capital eu faço alusão ao destino dos plebeus da antiga Roma. Eram originariamente camponeses livres que cultivavam, cada um por sua conta, suas próprias parcelas de terra. No curso da história romana, eles foram expropriados. O mesmo movimento que os separou de seus meios de produção e de subsistência implicou não somente a formação da grande propriedade fundiária, mas também de grandes capitais monetários. Assim, um belo dia havia, de um lado, homens livres, despojados de tudo, exceto de sua força de trabalho e, de outro, para explorar esse trabalho, os detentores de todas as riquezas adquiridas. O que ocorreu? Os proletários romanos transformaram-se não em trabalhadores assalariados, mas em “plebe” ociosa, mais abjeta que os brancos pobres do Sul dos Estados Unidos, e junto a eles não se desenvolveu um modo de produção capitalista, mas escravista. Portanto, acontecimentos de uma surpreendente analogia, mas que ocorreram em meios históricos diferentes, levaram a resultados inteiramente distintos. Estudando cada uma dessas evoluções separadamente e comparando-as em seguida, encontraremos facilmente a chave desse fenômeno, mas nunca chegaríamos a ela com o passe-partout de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica.” ([7]).
Vários aspectos dessa passagem merecem reflexão para nos darmos conta de sua incompatibilidade com a problemática que informa o Prefácio de 1859.
Não é mais possível pensar numa contradição imanente e única cujo desenvolvimento espontâneo produziria o processo histórico; prova disso é que Marx não diz que o capitalismo não nasceu em Roma porque as forças produtivas não estavam suficientemente desenvolvidas; o que ele diz é que “meios históricos diferentes” levaram a resultados diferentes. Ora, a noção de meio histórico faz referência tanto aos modos de produção vigentes em cada situação considerada (pequena produção camponesa e escravismo no caso da Antigüidade; feudalismo no caso da Baixa Idade Média), como a fatores e circunstâncias variadas e instaura a idéia de uma pluralidade de causas na origem de um determinado modo de produção. O capitalismo não nasceu em Roma da Antigüidade, a despeito de lá terem surgido o capital-dinheiro e o trabalhador juridicamente livre e sem propriedade, porque faltou “algo” que induzisse esses dois elementos a se encontrarem como compradores e vendedores da foça de trabalho. Acrescentaríamos, na linha de raciocínio de Marx no texto citado acima, que, no final da Idade Média, ressurgiram o capital-dinheiro e o trabalhador livre sem propriedade, mas, desta vez, “algo” fez com que esses dois elementos se unissem e produzissem a figura do moderno trabalhador assalariado. Logo, são vários os elementos e as condições necessários para que se forme a estrutura de um novo modo de produção e esses elementos e essas condições podem apresentar histórias relativamente independentes.
Em resumo, há uma pluralidade de causas que devem ser pensadas numa cadeia complexa e, não mais, como emanação necessária e mecânica de uma causa única ([8]). Se é assim, não se pode mais pensar o desenvolvimento espontâneo da estrutura conduzindo a uma nova estrutura e assim sucessivamente: modo de produção asiático, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo. Logo, a lógica de reprodução de uma estrutura não é mais, obrigatoriamente, a mesma que faz nascer a estrutura nova. É por isso que a citada carta de Marx de 1877 coloca-se num terreno, isto é, numa problemática distinta da problemática do Prefácio de 1859, rompendo com a problemática hegeliana no plano da teoria da história ([9]).
A elaboração de umanova problemática pelo grupo althusseriano
Na década de 1960, o coletivo de autores que produzia, sob a direção de Louis Althusser, a obra Lire Le capital incumbiu Etienne Balibar de examinar o tema da transição. Ele partiu, como se sabe, da crítica ao Prefácio de 1859 ([10]). Balibar sustentou que esse texto continha um desajuste entre a problemática hegeliana, na qual Marx ainda se apoiaria no seu Prefácio, e os novos conceitos e teses que ele apenas começava a produzir. Balibar apoiou-se em outros textos de Marx, parte deles produzida na década de 1870, isto é, no “período tardio”. Os textos mais utilizados por Balibar foram: aqueles em que Marx discute, com os revolucionários russos, a possibilidade de a transição socialista na Rússia reaproveitar a comuna agrária subsistente naquele país, principalmente as cartas de Marx a Mikhailovski e a Vera Zassulitch ([11]), o capítulo A acumulação primitiva no volume I de O capital, o conhecido Formas que precedem a produção capitalista e alguns outros.
O texto de Balibar desenvolve-se em dois planos distintos – no plano epistemológico, tratando da problemática na qual se deve pensar uma teoria marxista da transição, isto é, uma teoria marxista da história, e no plano da teoria, quando o autor apresenta as suas teses sobre o período de transição. A discussão mais longa é a discussão epistemológica sobre a problemática. Balibar estende-se numa série de proposições epistemológicas, que fazem a crítica à problemática hegeliana da história e também formulam propostas para a elaboração de uma problemática marxista. Em seguida, Balibar apresenta, um tanto rapidamente, as suas teses sobre o conteúdo do período de transição, teses que comporiam, especificamente, a teoria da transição proposta pelo autor.
A idéia geral é que é preciso pensar a transição fora da problemática hegeliana da evolução espontânea da estrutura movida por sua própria contradição interna. Uma estrutura não nasce, ao contrário do que supõe a concepção historicista (evolucionista e teleológica), de dentro da estrutura anterior. As contradições internas da estrutura existem, mas permanecem dentro dos limites estruturais do modo de produção. As crises econômicas cíclicas resultam das contradições da estrutura da economia capitalista, mas, por si só, apenas reproduzem o capitalismo numa outra escala. Elas obrigam a pensar o modo de produção capitalista, não de modo estático como se faz na análise sincrônica (reprodução simples), mas na sua dinâmica (reprodução ampliada). Porém, a dinâmica do modo de produção capitalista não é a sua diacronia (transição) ([12]). Como a transição não resulta da evolução espontânea da contradição própria da estrutura, as leis da transição de um modo de produção qualquer a outro modo de produção (leis da diacronia) são, obrigatoriamente, distintas das leis de reprodução de um modo de produção qualquer (leis da sincronia, para a reprodução simples, e da dinâmica, para a reprodução ampliada): reprodução e transição são dois objetos pertencentes a duas teorias regionais distintas.
O que ocorre é que a reprodução ampliada, isto é, a dinâmica do modo de produção pode gerar efeitos contraditórios que, esses sim, poderão dar origem aos elementos do futuro modo de produção. “A contradição é derivada, e não originária”, diz Balibar, isto é não está na estrutura, mas nos efeitos da estrutura. O capital-dinheiro concentrado em poucas mãos e o trabalhador expropriado surgiram, diz Balibar utilizando o capítulo A acumulação primitiva, no período em que dominava o modo de produção feudal como efeito derivado da dinâmica desse modo de produção; a concentração e centralização do capital e a socialização do trabalho são efeitos da dinâmica do modo de produção capitalista. A formação dos elementos necessários do futuro modo de produção depende do quadro histórico determinado pelo antigo modo de produção. Essa genealogia dos elementos é a pré-história do novo modo de produção – Balibar serve-se, abundantemente, do capítulo A acumulação primitiva. Essa pré-história, que é a pesquisa das origens do novo modo de produção, analisando um a um o surgimento dos seus elementos componentes, está separada do início da sua estrutura, da sua história, cuja análise considera a estrutura na sua integridade. Aqui se trata, de fato, do começo de um novo modo de produção e, portanto, do objeto da teoria da transição.
Estabelecidas essas proposições epistemológicas gerais, Balibar apresenta as suas teses teóricas sobre a transição. As características da fase de transição segundo Balibar seriam: a) no nível da estrutura econômica a não-correspondência entre as relações de propriedade e as relação de apropriação material (o exemplo é o período da manufatura onde teríamos uma não-correspondência entre a propriedade já capitalista e o controle técnico da produção ainda nas mãos do trabalhador); b) no nível da estrutura social total, a não-correspondência entre os diferentes níveis da estrutura social, com um desajuste por antecipação do político (“o direito, a política e o Estado”) frente ao econômico. A não-correspondência, ou desajuste, faz com que as diferentes estruturas (político e econômico) e as diferentes relações (propriedade e apropriação material) em vez de reproduzirem as condições de reprodução das demais, interfiram no seu funcionamento alterando-as. Nessa parte, Balibar apresenta apenas, como ele mesmo diz, umas observações esquemáticas. Eu iria mais longe. São observações um tanto vagas e, em parte, contraditórias com suas proposições epistemológicas. Sem recusar tais proposições, proponho uma correção nessa parte final do seu texto.
Balibar afirma que a propriedade privada capitalista (relação de propriedade) mina o controle técnico do produtor sobre o processo de produção (relação de apropriação material), induzindo a substituição da manufatura pela grande indústria, que, instaurando a subsunção real do trabalho ao capital, restaurará a homologia ou correspondência entre propriedade e apropriação material. No plano da estrutura social total, Balibar faz referências genéricas à violência do Estado e à manipulação da lei para tocar adiante o processo de acumulação primitiva. Em primeiro lugar, Balibar não diz qual é a relação entre os dois tipos de não-correspondência, ou desajuste, que ele apresenta – o desajuste na economia e o desajuste na estrutura social total. Em segundo lugar, Balibar apresenta como desajuste por antecipação do político frente ao econômico a intervenção política do Estado na acumulação primitiva que, no entanto, dentro de sua problemática deve ser considerada como pré-história dos elementos constitutivos do modo de produção capitalista, e não como processo de transição para esse modo de produção, que é do que se trata aqui. Nós proporemos, sem maior argumentação, que a transição se inicia pelo desajuste Estado-economia, isto é, se inicia pelo desajuste entre, de um lado, a estrutura do Estado alterada pela revolução que avançou em relação à economia, e, de outro lado, a estrutura da economia, que ficou para trás, ainda marcada pelo modo de produção anterior. Poderíamos dizer, para ilustrar essa idéia, que, no processo de revolução política burguesa, que abre a transição ao capitalismo, o Estado burguês impulsiona, graças ao seu direito formalmente igualitário, a substituição do trabalho compulsório, que depende da hierarquia jurídica das ordens e estamentos, pelo trabalho livre, enquanto no processo de revolução política proletária, o Estado operário, que deve ser já um semi-Estado vinculado a uma democracia de massa (socialização de tarefas administrativas, judiciais e repressivas anteriormente monopolizadas pela burocracia, eleição dos burocratas remanescentes, mandato imperativo para todo cargo administrativo, judicial e de representação política etc.), impulsiona a socialização dos meios de produção (planejamento democrático unificado, gestão operária da produção na base), restaurando a homologia ou correspondência entre política e economia – ao fazer com que à socialização do poder criada pela revolução socialista passe a corresponder à socialização da economia ([13]).
Retomando a carta de Marx aos populistas russos, diríamos que o “algo” que faltou na Roma Antiga foi, dentre outros elementos, o agente social da revolução política burguesa, revolução sem a qual, como indicamos acima, não se inicia o processo de construção do capitalismo. A Europa Moderna tinha acumulado, graças ao desenvolvimento das forças produtivas, uma gama de agentes populares da revolução política burguesa (regra geral, a burguesia não parece ter disposição para tomar a iniciativa para desencadear e manter um processo revolucionário): os camponeses, os artesãos urbanos, os pequenos lojistas e comerciantes e a nova “classe média” ligada ao trabalho não-manual nos serviços e no Estado. Roma Antiga chegou a dispor de algo semelhante? Parece-nos que não: seus camponeses não eram servos que necessitavam se rebelar contra a divisão da sociedade em ordens, como os camponeses do período feudal; pelo contrário, os camponeses romanos e gregos eram cidadãos e podiam possuir escravos. Mas se trata aqui de mera indicação de um caminho para se refletir sobre o problema: o caminho que considera seriamente a revolução política como requisito da transição de um modo de produção a outro.
Resgate da tese das forças produtivasa partir da nova problemática althusseriana
Vejamos onde nos encontramos.
Na filosofia da história de Hegel cada nova civilização nascia espontaneamente da contradição entre a evolução do Espírito do mundo e os limites da antiga civilização na qual, até então, esse Espírito podia se desenvolver. No Prefácio de 1859, Marx trabalha com idéia formalmente semelhante: cada novo modo de produção nasce espontaneamente da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e os limites das relações de produção nas quais, até então, a as forças produtivas podiam se desenvolver. Nos dois casos, há uma evolução pré-determinada e direcionada oriunda do funcionamento espontâneo da totalidade existente. É justamente essa problemática que Balibar rejeita. Para tanto, ele separa a lógica da reprodução da totalidade social da lógica da transição de uma totalidade social a outra e concebe o aparecimento de cada novo modo de produção como uma resultante que depende de uma pluralidade de fatores (depende pelo menos da economia e do político) e que, por isso, exclui o evolucionismo (desenvolvimento pré-determinado e direcionado).
Consideremos, agora, uma nova intervenção: aquela feita por Décio Saes no primiero número de Crítica Marxista, num ensaio intitulado “Marxismo e história”. Saes parte das idéias contidas no texto de Balibar. Destaca e aprofunda algumas das conclusões mais gerais desse autor, mas altera algumas outras e se afasta dele num ponto importante: propõe um retorno à tese da primazia do desenvolvimento das forças produtivas, retorno informado, contudo, pela crítica ao Prefácio de 1859 e pela nova problemática da transição contidas no texto de Balibar.
A estrutura do modo de produção sendo funcionalmente integrada, o elemento dinâmico primordial estaria, afirma Saes seguindo Balibar, nos efeitos contraditórios do funcionamento da estrutura, basicamente, pelos seus efeitos no desenvolvimento das forças produtivas. Aprofundando contudo a tese da separação entre o funcionamento da totalidade social e a sua transformação, Saes entende que a determinação em última instância da economia - o elemento materialista do marxismo - aplica-se apenas na mudança histórica, isto é, na transição de um modo de produção a outro, sendo distinta a relação da economia com a política na reprodução da totalidade social. Na reprodução dessa, prevalece, entre as estruturas dessa totalidade, uma relação de condicionamento recíproco: a estrutura jurídico-polítca é condição para o funcionamento da estrutura econômica, que, por sua vez, é condição para o funcionamento daquela. No funcionamento dessa totalidade integrada e não-contraditória não há, portanto, determinação pelo econômico – e sequer determinação em última instância, ao contrário do que pretendiam Balibar e os althusserianos. Essa radicalização da separação entre a reprodução e a transição repercute também na teoria das classes sociais. O autor entende que até um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas não existem classes sociais, mas grupos funcionais. As classes sociais se formariam apenas na etapa de crise e transição para um novo modo de produção.
“Como é possível explicar teoricamente que do funcionamento reprodutivo (não-contraditório) das estruturas do `todo´social emerja a contradição, cujo desenvolvimento redunda em ruptura dos mecanismos reprodutivos?” “(....) a reprodução da estrutura econômica de qualquer modo de produção – reprodução essa que não se configura, em si mesma, como um processo contraditório – apresenta uma dimensão cumulativa: o desenvolvimento das forças produtivas. (....) Mais especificamente: o processo de evolução das forças produtivas (por exemplo, a introdução de melhorias nos métodos de cultivo do solo que viabilizam a mercantilização crescente da produção agrícola, nos modos de produção pré-capitalistas; ou a socialização crescente do processo produtivo no capitalismo), próprio a qualquer modo de produção, cria condições para a transformação dos diferentes grupos funcionais, constituídos na esfera do processo produtivo, em classes sociais antagônicas. (....) Por sua vez, o desenvolvimento da contradição entre as classes sociais antagônicas – isto é, o desenvolvimento da luta de classes – determina a deflagração da revolução social: destruição da estrutura jurídico-política correspondente às relações de produção vigentes, formação de uma nova estrutura jurídico-política, defasada por antecipação relativamente às relações de produção vigentes. (....) Esse esboço está, sem dúvida, distante da visão economicista da mudança histórica apresentada por Marx no Prefácio, segundo a qual a transformação da base econômica, no seu conjunto, determina unilateralmente a transformação da superestrutura. Ele se aproxima, porém, do esquema staliniano da mudança histórica, já que em ambos o desenvolvimento das forças produtivas detém a primazia no processo global de transformação qualitativa das sociedades humanas, por ser o ponto inicial de uma cadeia causal (....). Em ambos, igualmente, a destruição da antiga estrutura jurídico-política – a `revolução social´ que resulta do aguçamento da luta de classes – constituem a causa imediata da transformação das relações de produção (a causa remota dessa transformação sendo o desenvolvimento, prévio, das forças produtivas, registrado na vigência das relações de produção anteriores. ([14])
A problemática de Balibar está claramente presente nessa formulação: a estrutura não é contraditória, a reprodução e a transição obedecem a leis distintas, há várias causas e fatores na explicação da história. Porém, a reintrodução da primazia do desenvolvimento das forças produtivas enseja a pergunta: o que mudou em relação ao Prefácio de 1859? Não se trataria da reintrodução da teoria economicista das forças produtivas pela porta dos fundos? Entendemos que não, porque a mudança de problemática (da hegeliana para a balibariana) repercuti profundamente na tese da primazia das forças produtivas. Aqui, a idéia de cadeia causal é importante: o movimento econômico pode gerar grupos sociais novos, com interesses e valores novos, que não se enquadram no sistema social existente, desestabilizando-o. Observemos que tais teses nos afastam tanto da problemática da negação da negação, na qual uma estrutura gera espontaneamente a outra estrutura, como do materialismo aleatório do último Althusser, e que essa idéia não está explícita em Balibar. Assim, as forças produtivas não são mais, ao contrário do que ocorre com a formulação hegeliana invertida de Marx no Prefácio de 1859, a causa única de todo o movimento histórico e o novo modo de produção não nasce espontaneamente do desenvolvimento do modo anterior. A separação entre a estrutura integrada e os efeitos contraditórios da estrutura evita, também, que se pense as forças produtivas como algo socialmente neutro. Mas, esses pontos exigem mais desenvolvimentos.
Uma última observação. O texto de Décio Saes usa alternativamente as expressões “desenvolvimento das forças produtivas”, “movimento econômico” e “fator econômico”. Essas duas últimas são as expressões preferidas por Engels na sua famosa carta de 1890 a Joseph Bloch, em que desenvolve a idéia segundo a qual, no processo histórico, é o “movimento econômico” que acaba se impondo em última instância. Engels utiliza também as expressões “condições econômicas” e “premissas econômicas”. Tais expressões são indicativas de um problema. A força que, em última instância move a história, é o desenvolvimento das forças produtivas ou a transformação da base econômica em geral? Uma questão desse tipo pode lançar nova luz sobre o debate acerca da transição do escravismo antigo para o feudalismo.
Questões em aberto
Voltemos, para encerrar esse percurso, à questão do limite ou ponto cego da teoria da história: por que ocorre (ou pode ocorrer) um desenvolvimento das forças produtivas ao longo da história? Por que esse desenvolvimento, ou a mudança econômica em geral, afeta toda estrutura social?
Esse ponto cego da teoria marxista não diminui em nada a sua qualidade científica. Grandes cientistas, que propiciaram saltos qualitativos na história da ciência, formularam suas teorias conscientes dos limites que elas continham e do fato de que dificilmente poderiam, eles próprios em sua época, superar tais limites. Do nosso ponto de vista, entendemos que o conhecimento histórico disponível na época de Marx inviabilizava a explicação sobre o porque do desenvolvimento das forças produtivas na história. Comparando as hipóteses para uma teoria da história presentes no Prefácio de 1859 com outros domínios do conhecimento científico, poderíamos lembrar que Charles Darwin formulou a teoria da origem das espécies pela via da seleção natural, na qual a transmissão de caracteres de uma geração para outra desempenha papel central, sem conhecer os fundamentos da genética, e que Sigmund Freud formulou a sua teoria das neuroses como manifestações deformadas de de pulsões recalcadas, principalmente pulsões de tipo sexual, sem poder explicar as razões da importância desse tipo de pulsão ([15]).
Althusser, o crítico do humanismo teórico, sempre alertou que essa crítica não elide a necessidade de os marxistas pensarem cientificamente a espécie humana e seus atributos, abrindo a possibilidade de desenvolver e articular uma antropologia materialista e uma história materialista. Althusser, na verdade, apresentou o humanismo teórico, que consiste numa imputação especulativa sobre o gênero humano seguida de deduções sobre a (melhor) forma de vida social, como um obstáculo epistemológico à pesquisa científica (materialista) sobre a espécie humana. A metáfora do obstáculo indica algo que impede o avanço da ciência, mas, ao mesmo tempo, tem alguma relação com o problema que ele esconde, pois, de algum modo, alude a esse problema. Althusser apresenta uma lista dos obstáculos (ideologia) e dos problemas (ciência) correlatos que eles escondem. Para o que aqui nos interessa, cabe ressaltar que as noções de gênero humano, consciência, trabalho e alienação funcionam, segundo Althusser, como um obstáculo epistemológico para pensar o problema real da espécie humana, enquanto forma de vida animal e de suas relações com as formações sociais e a dialética da história ([16]).
Talvez a explicação para a primazia do desenvolvimento das forças produtivas deva recorrer, tanto a alguns dos atributos da espécie humana quanto aos processos históricos das formações sociais ([17]).
* Este texto foi motivado pelas discussões do Grupo de Estudos Marx e Hegel do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp.
§ Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e editor da revista Crítica Marxista.
[1] A problemática é algo anterior à teoria, de tal modo que teorias distintas, como é o caso da filosofia da história de Hegel e da teoria da história do Marx de 1859, podem, a despeito de suas diferenças, pertencerem a uma mesma problemática. Essa, na definição de Louis Althusser, representa o terreno e as perguntas nos quais se produz uma ou mais teorias. Numa fórmula sintética, Althusser afirma que a problemática é a “unidade profunda” de um pensamento. Ver Louis Althusser, “Sur le jeune Marx” in Pour Marx, Paris, François Maspero, 1965.
[2]“[O Espírito] é o seu próprio produto, ele é o seu começo e o seu fim. (....). Produzir-se, fazer-se objeto de si mesmo, conhecer-se a si mesmo: eis a atividade do Espírito.”. “A substância da história é o Espírito e o percurso de sua evolução.”. “A história é a explicitação e a realização do Espírito universal.” (Hegel, La raison dans l´histoire – Introduction à la philosophie de l´histoire. Tradução, introdução e notas de Kostas Papaionnaou, Paris, Union Générale d´Éditions, Coleção 10/18, 1965. Citações extraídas, respectivamente, das páginas 76, 70 e 298).
[3] “O povo que recebe tal elemento [isto é, o Espírito particular que expressa o Espírito universal na sua auto-evolução] como princípio natural tem por missão realizá-lo no processo evolutivo da consciência de si do Espírito do mundo. [Esse povo é] o representante de determinado estágio do Espírito do mundo (....)” (Hegel, op. cit., p. 300). “[Com o] nascimento de um princípio superior (....). [Isto é, com] a passagem do Espírito a um novo princípio (....) [a] história é entregue a um outro povo.” (Hegel, idem, p. 300)
[4] Comentando um fragmento de Tales de Mileto, Hegel diz que ele foi o primeiro filósofo por ter sido o primeiro a estabelecer que “tudo é um”. E Hegel acrescenta que o princípio que consiste em reduzir tudo a um elemento interno e oculto é mais importante que a determinação da natureza desse elemento. Ver, Os pré-socráticos, São Paulo, Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.
[5] Num artigo de crítica à obra de Louis Althusser, Michel Löwy recorda ao leitor duas teses que Althusser defendeu com igual insistência em diversos textos: a tese segundo a qual a história é um processo sem sujeito nem fim e a tese segundo a qual as massas fazem a história. Em seguida, Löwy pergunta, com ironia, como é que seria possível defender, simultaneamente, que as massas fazem a história e que a história seria um processo sem sujeito. Parece-lhe tão óbvio ter descoberto um dilema na obra althusseriana, que ele se dispensa de demonstrar isso ao leitor e encerra, em tom triunfalista, o seu artigo. Ora, o que estamos vendo nos textos de Hegel e de Marx que estamos comentando são diferentes formas de conceber a história como resultado da ação dos homens, sem que, por isso, esses sejam sujeitos da história. Na obra de Hegel, há uma tensão. Se pusermos acento na idéia de que o Espírito do mundo, que se realiza no ponto de chegada, está virtualmente pronto já no início do processo, teremos o Espírito como sujeito da história – essa é a leitura de Jean Hyppolite, no seu ensaio sobre a filosofia da história de Hegel. Se, ao contrário, acentuarmos que o Espírito se forma no próprio processo, o processo será um processo sem sujeito – esta é a leitura de Althusser na sua conferência sobre Hegel no Collège de France sobre a história como processo sem sujeito. Já no Marx de 1859, não há, em nenhuma hipótese, sujeito da história, uma vez que a dinâmica da história é dada pelo desenvolvimento cego e espontâneo das forças produtivas. Em qualquer dos três casos, repito, os homens fazem embora não sejam o seu sujeito. O texto de Michaël Löwy a que me refiro é o artigo “L´humanisme historiciste de Marx ou relire le Capital”. Foi publicado em Contre Althusser - pour Marx, vários autores, Paris, Les Editions de la Passion, 1999, segunda edição revista e ampliada. Ver ainda Jean Hyppolite, Introdução à filosofia da história de Hegel. Lisboa, Edições 70, 1995 e Louis Altusser, .................. in ................. Hegel e o pensamento moderno..........
[6] Consultar sobre a fase dita tardia da produção de Marx o artigo de Pedro Leão da Costa Neto, “Marx tardio: notas introdutórias”, Crítica Marxista, n. 17, Rio de Janeiro, Editora Revan, 2003.
[7] Trecho da carta de Marx, de novembro de 1877, ao Redator do Otietchestvienniie Zapiski. Apud Rubem Csar Fernandes(org.), Dilemas do socialismo - a controvérsia entre Marx, Engels e os populistas russos, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1982, p. 167-168.
[8] Nesse ponto, vem à mente o conceito de sobredeterminação de Louis Althusser e, também, a velha questão das relações da obra de Max Weber com a obra de Marx. Havendo múltiplas determinações, Marx além de se afastar de Hegel, não estaria se aproximando de Weber? Gabriel Cohn argumenta, convincentemente, que não. Ver o seu livro Crítica e resignação – fundamentos da sociologia de Max Weber, São Paulo, TAQ Editores, 1979, p. 145 e sgts.
[9] No seminário do Grupo Marx e Hegel, surgiu uma possível contestação dessa afirmação: a comparação direta entre os textos de 1859 e 1877 não seria correta porque o primeiro trabalha com um objeto supramodal, enquanto o segundo trata de uma transição específica numa formação social específica (Roma). Na elaboração teórica dos conceitos de modo de produção e de transição, podemos conceber três níveis de abstração hierarquicamente ordenados, do mais abstrato e simples ao mais concreto: a) o modo de produção e a transição em geral, b) os modos de produção e as transições históricas e c) o nível das formações sociais. que podem articular diferentes modos de produção. Nessa hierarquia, o Prefácio de 1859 estaria no primeiro nível e a carta aos populistas russos no terceiro, sendo isso que impediria a comparação direta entre as teses dos dois textos. Será preciso refletir mais sobre tal objeção; por ora, considero que a ela não invalida minha afirmação sobre a mudança de problemática de um texto para outro, pois Marx está comparando na carta aos populistas russos a Roma Antiga com a Europa Moderna e dessa comparação extrai uma conclusão teórica que remete ao nível de abstração mais geral (nível a na enumeração acima), o nível supramodal, que é o mesmo nível do Prefácio de 1859.
[10] Estamos nos referindo ao texto de Etienne Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”. Ver Althusser et allia Lire le Capital, Paris, PUF, 1996, p. 419-568. Ver, particularmente o último item desse texto – “Eléments pour une théorie du passage”, p. 520-568. Secundariamente, utilizamos também, do mesmo autor, La philosophie de Marx, Paris, La Decouverte, 1993 - particularmente o capítulo IV “Temps et progrès: encore une philosophie de l´histoire?”.
[11] Como já indicamos em nota anterior, há uma edição brasileira das controvérsias entre Marx e Engels e os populistas russos. Rubem César Fernandes, org., Dilemas do socialismo – a controvérsia entre Marx, Engels e os populistas russos, op. cit. A correspondência entre Marx, Mikhailovski e Vera Zassulitch encontra-se nas páginas 157-188.
[12] É importante alertar que, para Balibar, abandonar esse terreno hegeliano não significa cair no terreno da história contingente ou da causalidade infinita e irreconstituível no plano da teoria. A transição de um modo de produção a outro modo de produção, passagem para a qual Balibar reserva o termo diacronia, está submetida a leis gerais que devem ser o objeto de uma teoria da transição. Logo, esse texto de Balibar não é compatível com o chamado materialismo aleatório, concepção materialista da história elaborada por Althusser em um texto da década de 1980, texto que foi publicado apenas postumamente e que ainda se encontra inédito no Brasil. Nesse texto, Althusser sustenta que o encontro dos elementos é aleatório – Althusser utiliza, alternadamente, os termos “aléatoire” e “rencontre”, que, ao contrário do termo português encontro, sempre indica acaso. O capital-dinheiro e o trabalhador livre e sem propriedade não se encontraram, mas poderiam ter se encontrado, na Roma Antiga; encontraram-se, mas poderiam não ter se encontrado, na Baixa Idade Média. O materialismo aleatório é o reino da contingência e não das leis necessárias Louis Althusser, “Le courant souterain du matérialisme de la rencontre”. Louis Althusser, Écrits philosophiques et politiques, Paris, Edições Stock/Imec, 1995. Ver também o comentário de Vittorio Morfino “Il materialismo della pioggia di Althusser. Um lessico”, Quaderni Materialiti, n. 1, Milano, 2002.
[13] Décio Saes e Luciano Cavini Martorano desenvolveram essas idéias estudando a transição para o capitalismo e a transição para o socialismo. Eu próprio discuti o tema ao analisar a questão da revolução política burguesa na Europa Moderna e a questão do poder político operário na Comuna de Paris de 1871. Ver Décio Saes, A formação do Estado burguês no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra; Armando Boito Jr. “Revolução política e teoria da transição: uma crítica à análise poulantziana do Estado Absolutista”, texto inédito apresentado no Colóquio Althusser da Università Ca` Foscari de Venezia, fevereiro de 2004; Luciano Cavini Martorano, “Elementos do Estado proletário na Comuna de Paris”. In Boito Jr., Armando (org.), A Comuna de Paris na história, São Paulo, Editora Xamã, 2002; Armando Boito Jr., “Comuna republicana ou Comuna operária. A tese de Marx posta à prova” in Armando Boito Jr., organizador, A Comuna de Paris na História, obra citada, p. 47-66
[14] Décio Saes, “Marxismo e história”, Crítica Marxista, n. 1, São Paulo, Editora Brasiliense, 1993, p. 53-54 e 55-56.
[15] Cito dois estudiosos das obras de Darwin e Freud. A) “Na ausência de qualquer conchecimento da base física da hereditariedade e variação, Darwin atribuiu um papel ativo às condições externas da vida como um grande indutor da variação.” “(....) o mecanismo fundamental da evolução já está agora amplamente solucionado (....) e proveio do estudo do elo material entre as gerações. Os atributos do material genético, ADN, são de tal ordem que a evolução pela seleção natural pode agora ser encarada como uma propriedade necessária da matéria organizada de determinada maneira.” B) “Freud afirmou ao longo de toda a sua obra que a ação do recalcamento se exercia preferencialmente sobre a pulsão sexual; consequentemente atribui a essa um papel primordial no conflito psíquico, deixando em aberto, no entanto, a questão de saber o que, em definitivo, fundamenta tal privilégio.” Jonathan Howard, Darwin, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982, p. 109 e 115; Laplanche e Pontalis, Vocabulário de psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, p. 404..
[16] Louis Althusser, “A querela do humanismo - II”, Crítica Marxista, n. 14, São Paulo, Boitempo, 2002, p. 50-52.
[17] Gerald A. Cohen, um dos fundadores do marxismo analítico anglo-saxão, procura fundamentar a tese do desenvolvimento das forças produtivas e da primazia desse desenvolvimento sobre as relações de produção, presentes no Prefácio de 1859, recorrendo, para tanto, à idéia da racionalidade da espécie humana e da sua capacidade para melhorar sua própria situação. Essa parece-nos uma solução ainda tributária do humanismo teórico, isto é, ainda prisioneira do obstáculo epistemológico de que fala Althusser. Sobre o livro de Cohen ver os comentários de Stefano Bracaleti, “Il marxismo analitico e il problema della spiegazione funzionale applicata al materialismo storico”, Quaderni materialisti, n. 1, Milão, Edizione Ghibli, 2002.




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Mayo/2004

o dia a dia na terra das bananas & naquelas terras dá lem mar

[29/jan/2003] Fritjof Capra: Não li e não gostei
Quando se trata de escolher o que se vai ler, o preconceito é fundamental. Mesmo estando focado em determinado assunto, estarão nas prateleiras dezenas de obras diferentes. E diante desta diversidade, a gente toma consciência de que nossa capacidade de leitura é extremamente restrita. Se a gente ler uns quinze livros por ano, cento e cinqüenta ao final de uma década, teremos lido menos que o número de novas publicações anuais, de uma única boa editora.
Por isto importa a qualidade. Não se abre qualquer coisa para ler. Tem que ser bem recomendado, de preferência por um especialista. O resenhista do jornal tem que ser muito competente na sua missão de mostrar que há vida inteligente por trás daquela obra. Prefácio, orelhas e contracapas ajudam, mas não contam muito: sempre serão positivos. De qualquer modo, obviamente a decisão final e soberana é a do leitor, de frente para a estante.
Admito que sou preconceituoso, quando a questão é decidir quem eu vou, ou não, ler. Um dos autores que esteve na minha lista de renegados ao esquecimento, por muitos anos, foi Fritjof Capra. Mas, recentemente, eu estava num local cujo o único livro disponível era "O Tao da Física", seu primeiro sucesso, da década de 1970 [1]. Por falta de opção, resolvi dar-lhe uma chance, e saber o tinha a dizer.
No fundo minha opinião a respeito de Capra antes da leitura não era muito negativa. Até achava que o desprezo que o mundo intelectual lhe dedicava, seria talvez motivado pelo preconceito com relação à linguagem orientalista que este autor adotara, com uma dose de inveja por seu sucesso editorial.
Mas eu estava enganado! "O Tao da Física" é uma porcaria realmente. Li, nas primeiras cinqüenta páginas, uma quantidade tão absurda de bobagens, enganos, má interpretações, que desisti por ali mesmo. Capra, desde aquele momento, voltou para minha a lista negra dos autores que não serão lidos.
História ruim
Logo no início de "O Tao da Física", Capra traça as linhas gerais de uma história do pensamento do ocidente, que ele pretende criticar. Parece um texto tirado de um manual de filosofia pra imbecis. Um pouquinho de Pré-socráticos, pula Platão e passa serelepe para Aristóteles:
"O conhecimento científico da Antiguidade foi sistematizado e organizado por Aristóteles, que criou o esquema que viria a se tornar a base da visão ocidental do universo durante dois mil anos. (...) A razão que permitiu a imutabilidade do modelo aristotélico do universo por tanto tempo tem a ver exatamente com esta ausência de interesse pelo mundo material, lado a lado com o severo predomínio da Igreja Cristã, que apoiou as doutrinas aristotélicas durante toda a idade média." (p.24)
Capra só se esquecera de um detalhe: Aristóteles só se tornou conhecido na Europa ocidental, a partir do século 13. Como pode ter predominado por dois mil anos? De certa forma, este engano é compreensível, pois uma boa quantidade de divulgadores da história da filosofia e da ciência o cometem. Capra só repetiu suas fontes.
Repetiu seus preconceitos também. Desprezou a profunda influência de Platão sobre o pensamento do ocidente. E mostrou total incompreensão a respeito da idade média: "o desenvolvimento posterior da ciência teve que aguardar o Renascimento" (p.25).
Mesmo autores muito mais competentes cometem deslizes deste tipo. Carl Sagan considerava a idade média como "uma longa hibernação mística" ("Cosmos", p.187). E Marcelo Gleiser faz coro com Capra:
"Por mais de 2 mil anos, do século IV a.C. até o século XVII, o pensamento de Aristóteles exerceu profunda influência no mundo ocidental. De fato, podemos até dizer que a história da ciência durante esse período se resume, grosseiramente, em duas partes. Na primeira, encontramos uma série de tentativas semidesesperadas de fazer com que a Natureza e a teologia cristã se adaptassem ao legado aristotélico. Na segunda, que ocupou os últimos cem anos desse longo período, presenciamos o nascimento da ciência moderna, que por fim levou ao total abandono das idéias aristotélicas." (A dança do universo, p.72)
É urgente que Koyré se torne leitura obrigatória nas faculdades!
Capra continua com sua história ocidental para imbecis. Dedica um espaço maior para Descartes, e após resenhar didaticamente a separação cartesiana entre matéria e espírito conclui:
"Esta visão mecanicista de mundo foi sustentada por Isaac Newton, que elaborou sua Mecânica a partir de tais fundamentos, tornado-a alicerce da física Clássica." (p.25)
Calma ai! Newton construiu a sua mecânica justamente para contrapô-la ao mecanicismo de Descartes! Newton era um místico que acreditava que qualquer filosofia da natureza que não incluísse Deus, como agente ativo na dinâmica do Universo, deveria ser combatida. E foi justamente por não se conformar ao estrito mecanicismo cartesiano, que Newton foi capaz de formular a lei da Gravidade, que propunha ação à distância entre corpos.
Mas nada disto importa para Capra, afinal o que ele quer é apenas concluir que todos os males da cultura do ocidente são devidos a nós mesmos nos vermos como "egos isolados existindo dentro de seus corpos" (p.25, grifos do autor). Segundo Capra esta divisão cartesiana se estendeu ao nível político, e explicam o racismo e as desigualdades!
Sou absolutamente leigo no que diz respeito às sofisticações do pensamento oriental. Mas diante de um autor tão tosco no trato da filosofia e história do ocidente, como eu poderia confiar nele para guiar meus primeiros passos nas antigas tradições místicas do oriente? Como poderia confiar em suas soluções para os "males da civilização ocidental", se seu diagnóstico demonstra tanta incompetência?
Filosofia ruim
Capra dá valor de conhecimento aos estados mentais típicos de experiências místicas. Enquanto o "conhecimento racional" é relativizado como "um sistema de símbolos e conceitos abstratos, caracterizados pela estrutura seqüencial e linear" (p.29), o conhecimento adquirido a partir das experiências místicas ganha um status de absoluto. Sem nenhuma justificativa, o saber apreendido pela experiência mística é identificado com o "ser-em-si":
"O misticismo oriental baseia-se na percepção direta da natureza da realidade." (p.39)
O aceso à realidade absoluta por meio da experiência mística é um postulado de base para o pensamento de Capra, tal como ele o expressa em "O Tao da Física". Tudo depende de você aceitá-lo ou não. Não haverá nenhuma justificativa ou discussão mais sofisticada.
E o conceito de experiência mística envolve um amplo leque fenômenos mentais: intuição, insight, deja-vu, iluminação, nirvana, estado meditativo, lembrar de repente de uma palavra esquecida, entender uma piada. Capra põe tudo isto no mesmo baú holístico-oriental e despreza completamente os diversos processos cerebrais, que geram cada uma destas experiências.
Mas, segundo o autor, nem tudo está perdido para os coitados dos ocidentais. O pensamento moderno, principalmente aquele oriundo da física contemporânea, começa aos poucos a vislumbrar, o que há muito os místicos já sabem:
"A Física atômica forneceu aos cientistas os primeiros lampejos da natureza essencial das coisas. (...) A partir de então, os modelos e imagens da Física moderna tornaram-se semelhantes aos da filosofia oriental." (p.46)
Mas é claro que os processos dos físicos e dos místicos são diferentes. E esta constatação leva a uma pérola que merece ser transcrita na íntegra:
"Os físicos efetuam experimentos que envolvem um complexo trabalho de equipe e uma tecnologia altamente sofisticada; por sua vez os místicos obtém seu conhecimento puramente através da introspecção, sem a intervenção de qualquer máquina, no silêncio da meditação. Os experimentos científicos, além disso, parecem ser passíveis de repetição em qualquer época por qualquer individuo; por seu turno, as experiências místicas parecem reservadas a alguns poucos seres humanos em ocasiões especiais. Uma análise mais cuidadosa demonstra, contudo, que as diferenças entre os dois tipos de observação residem unicamente em sua abordagem e não em sua confiabilidade ou complexidade." (p.36)
Ou seja, os processo são diferentes em sua natureza e metodologia, mas têm os mesmo grau de "confiabilidade e complexidade". (Isto talvez explique por que recentemente a companhia de celulares Tim contratou um Pajé para impedir que chovesse no dia de um show promocional, no Rio de Janeiro, ao invés de consultar um meteorologista para saber se choveria ou não.)
Foram cinqüenta páginas penosas. Confesso que me foi impossível continuar a leitura. Mas já se passaram quase trinta anos desde a publicação de "O Tao da Física". Com certeza muito do pensamento de Capra deve ter mudado. Deve estar mais sofisticado e cuidadoso. Dizem que atualmente está mais procupado com questões relativas à globalização e os problemas éticos da biotecnologia.
Realmente não sei o que ele tem a dizer hoje, mas confesso que diante do desastre intelectual que é a sua primeira obra, prefiro manter uma distância segura. A partir de agora, quando me perguntarem o que achei de seu novo livro, responderei - cínico como Graciliano Ramos - não li e não gostei.
(texto de Mario Barbatti)
[1] O Tao da Física, F. Capra, Cultirx, 2000.


a relação educação e sociedade

o dia a dia na terra das bananas & naquelas dá lem mar

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Time brasileiro volta para casa

Brasil perde para a Holanda e é eliminado de novo nas quartas
Seleção tem atuação segura no primeiro tempo, mas se descontrola no segundo e é derrotada de virada, por 2 a 1, dando adeus à África do Sul
Por Daniel Lessa Direto de Porto Elizabeth, África do Sul
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Em toda a sua preparação e durante a Copa do Mundo na África do Sul, a seleção brasileira se esforçou em adotar uma filosofia diferente da utilizada em 2006. Por ironia, o resultado foi o mesmo: derrota para uma seleção europeia e eliminação nas quartas de final. No lugar da França, o algoz foi a Holanda. E Sneijder tomou de Henry o posto de carrasco, participando do lance do primeiro gol e marcando o segundo na vitória por 2 a 1, de virada, nesta sexta-feira.
Foi ele o eleito o melhor em campo no estádio Nelson Mandela Bay, em votação popular no site da Fifa. Pelo primeiro tempo, ficou a impressão de que dificilmente o escolhido deixaria de ser um brasileiro. A seleção dominou a Holanda, marcou seu gol (com Robinho) logo no início, criou lances bonitos e foi pouco ameaçada. A partida após o intervalo, no entanto, foi outra. O Brasil falhou na defesa, seu setor mais elogiado, esteve acuado, quase não chegou ao ataque e demonstrou instabilidade emocional. E viu mais um jogador seu ser expulso na competição, depois que Felipe Melo deu um pisão em Robben.
A eliminação em Porto Elizabeth representa um duro golpe na era Dunga como técnico. A seleção vinha acumulando bons resultado - como os títulos da Copa América e da Copa das Confederações, a primeira colocação nas eliminatórias e vitórias expressivas sobre adversários de peso - mas fracassou em sua principal missão, a conquista do hexacampeonato. Os brasileiros, que receberão a Copa de 2014, voltam para casa com uma campanha de três vitórias, um empate e uma derrota.
A Holanda, que acumulou sua quinto triunfo consecutivo na Copa e agora soma 24 partidas de invencibilidade, enfrentará Gana ou Uruguai na semifinal, em partida na próxima terça-feira, às 15h30m (de Brasília), na Cidade do Cabo. E se vinga das eliminações nas edições de 1994 e 1998, as duas últimas vezes em que havia cruzado com o Brasil em Mundiais.
Brasil faz gol, marca duro e joga bonito
Conhecidas pelo estilo bonito de jogar, as seleções de Brasil e Holanda deixaram o futebol de lado nos primeiros minutos. Luis Fabiano e Van Bommel se estranharam e foram repreendidos pelo árbitro. O holandês pareceu não se intimidar, já que em seguida discutiu com Robinho. Passado esse início nervoso, no entanto, os brasileiros perceberam que teriam espaço para jogar.
Robinho comemora o gol após receber passe primoroso de Felipe Melo, aos dez minutos (Foto: Reuters)
A primeira pista veio com passe de Maicon, que encontrou Daniel Alves livre, mas impedido, ainda que por pouco. Já Robinho se posicionou melhor e correu sozinho no meio da zaga laranja. Recebeu passe primoroso de Felipe Melo e chutou com estilo, sem dominar a bola, superando o goleiro. Com 1 a 0 no placar logo aos dez minutos, o Brasil pôde se planejar para atuar do jeito que mais gosta: marcando duro no campo defensivo e procurando os contra-ataques.
No entanto, o estilo da Holanda, de não ir ao ataque desesperadamente, fez com que os contragolpes não viessem. Ainda assim, o Brasil produziu belas jogadas. Numa delas, Daniel Alves deu dois cortes pela ponta e cruzou para Juan chutar por cima do gol. Na mais bonita, Robinho deixou para trás dois marcadores, Luis Fabiano deu passe de letra, e Kaká chutou bem ao seu estilo, com efeito, obrigando Stekelenburg a fazer excelente defesa.
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Com uma muralha à sua frente, Julio Cesar pouco trabalhou no primeiro tempo: fez duas defesas seguras em chutes de Kuyt e Sneijder. E só. O craque Robben insistiu na sua jogada preferida, de carregar a bola pela direita e cortar para a esquerda, mas foi sempre bloqueado antes do chute. A Holanda tentou invadir o terreno brasileiro recorrendo até à malandragem. Em cobrança de escanteio, Robben deu um leve toque na bola e correu para a área. Mas Daniel Alves, atento, chegou antes de qualquer adversário.
Após 19 faltas, o primeiro tempo terminou com mais uma boa jogada da seleção, em que Kaká - até então mais participativo do que em outros jogos - inverteu um lance da esquerda para a direita. Maicon chutou para defesa do goleiro.
Brasil leva gols, falha na marcação e se descontrola
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Tão segura nos 45 minutos iniciais, a equipe começou vacilante na segunda etapa. Um lance displicente no primeiro minuto fez com que Felipe Melo levasse uma bronca de Lúcio. Sete minutos depois, o Brasil sofreu o empate num lance que, até esta sexta-feira, era incomum na Copa: falha da zaga, e ainda por cima numa bola aérea. Julio Cesar e Felipe Melo se chocaram, e a bola cruzada por Sneijder desviou de leve no volante antes de entrar. Foi o primeiro gol contra do Brasil na história dos Mundiais.
A igualdade no placar desestabilizou o Brasil, que ficou acuado em seu campo e viu suas tentativas de ataque esbarrar em erros de passe. Só conseguiu concluir uma jogada aos 20 minutos, quando Kaká bateu colocado, mas sem muito perigo. A Holanda, que mostrou suas fragilidades no primeiro tempo, passou a explorar as do Brasil, recorrendo ao lado direito do ataque e fazendo Michel Bastos sofrer para marcar Robben. Preocupado com o seu lateral, que já havia recebido cartão amarelo, Dunga trocou-o por Gilberto aos 16 minutos.
Cabisbaixo, Julio Cesar deixa o campo após a derrota do Brasil no Nelson Mandela Bay (Foto: Reuters)
Seis minutos depois, a Holanda conseguiu a virada. E em outra falha da defesa. Uma cobrança de escanteio encontrou Kuyt, que, posicionado na primeira trave, desviou a bola para trás. Sneijder, com seu 1,70m, cabeceou para a rede. Mais seis minutos, e a situação piorou. Felipe Melo fez falta e em seguida deu um pisão em Robben, recebendo cartão vermelho direto.
Dunga ainda substituiu Luis Fabiano por Nilmar, mas a troca de um atacante por outro pouco ajudou a seleção, que só conseguiu levar algum perigo aos holandeses em duas cobranças seguidas de escanteio. Aos 44 minutos, veio a tentativa derradeira. Daniel Alves teve uma cobrança de falta, mas a bola explodiu na barreira. Era o fim do sonho do hexacampeonato.